sábado, 27 de janeiro de 2018

Indiferença

De repente, o seu consolo não surtia mais nenhum efeito. O seu “bom dia”, ou a falta dele, já não fazia diferença. Eu não esperava pelo seu toque, ou pelo momento de beijar. Beijos que eram harmônicos como o fogo e a água, tequila com limão e sal, encontro de mar e rio, queijo com goiabada; agora não passavam de um costume, vazio e automático. Seus braços já não são tão quentes, e seus abraços não curavam. O que fazíamos antes de dormir não dava mais pra chamar de "amor", havia algum tempo. A distância já não trazia a ansiedade e o prazer do reencontro. Os elogios, pareciam puxação de saco. A teimosia, antes tão altiva, agora só parecia uma implicância insuportável com tudo o que eu tinha a dizer. Tanto faz se você atrasa ou chega no horário. Não me preocupo mais se algo de errado aconteceu, diante da sua constante falta de pontualidade. Sua falta de habilidade na cozinha também já deixou de ser um charme. Sua bagunça pela casa agora atrapalha a minha organização. Me preocupo se o som alto incomoda os vizinhos. Pra ser sincera, nunca me identifiquei com o que você ouve. Não dou a mínima para o que você veste, para a sua combinação de cores claras e escuras, chamativa. Seus óculos de sol de estilo aviador, genéricos. Sua opinião sobre a "geração Z" já estão desatualizadas. Todas as suas piadas perderam a graça. Sua risada, aliás, não traz mais a minha. Já é difícil dialogar com você. Seus argumentos parecem distantes da realidade, perdidos sempre nas utopias que um dia construímos juntos, mas que hoje, nem sequer fazem sentido. O silêncio, por outro lado, me incomoda, quando é preenchido com a sua presença. Não vejo beleza em você, ou na minha rotina, sempre tão corrida. Aliás, nem correr pra longe de você me parece suficiente.

Será que todas essas flores que um dia enxerguei em você algum dia existiram, ou murcharam em algum de nós?

Apelo- Releitura

Na oficina cultural "Formação de leitores contemporâneos", como parte da atividade prática, os participantes criaram um grupo oculto no Facebook para fazer releituras sobre o conto "apelo" parte da obra "O Vampiro de Curitiba", de Dalton Trevisan. Deixo aqui a minha versão - e é claro, a original, pelo diálogo entre os textos, e simplesmente por que vale a pena ser lido.

Conto Apelo (original):

Amanhã faz um mês que a Senhora está longe de casa. Primeiros dias, para dizer a verdade, não senti falta, bom chegar tarde, esquecido na conversa de esquina. Não foi ausência por uma semana: o batom ainda no lenço, o prato na mesa por engano, a imagem de relance no espelho.
Com os dias, Senhora, o leite primeira vez coalhou. A notícia de sua perda veio aos poucos: a pilha de jornais ali no chão, ninguém os guardou debaixo da escada. Toda a casa era um corredor deserto, até o canário ficou mudo. Para não dar parte de fraco, ah, Senhora, fui beber com os amigos. Uma hora da noite eles se iam e eu ficava só, sem o perdão de sua presença, como última luz na varanda, a todas as aflições do dia.
E comecei a sentir falta das pequenas brigas por causa do tempero da salada — meu jeito de querer bem. Acaso é saudade, Senhora? Às suas violetas, na janela, não lhes poupei água e elas murcham. Não tenho botão na camisa. Calço a meia furada. Que fim levou o saca-rolha? Nenhum de nós sabe, sem a Senhora, conversar com os outros: bocas raivosas mastigando. Venha para casa, Senhora, por favor.


Releitura:

Amanhã faz um mês que eu saí de casa. Os primeiros dias foram difíceis, até para voltar a suportar a convivência comigo mesma. Mas não se preocupe, foi ausência de uma semana, logo mais e sem reservas, me encontrei nas manias mais intrínsecas e cotidianas: borrando todos os lenços com batom, organizando todas as louças milimetricamente e conferindo minha imagem no espelho a cada minuto.
Com os dias a casa passou a ficar arrumada, e o cheiro de ausência, úmido, também não mais existia. A sala limpa, os jornais lidos e organizados embaixo da nova escada. Eu podia ler em paz, sem o som da televisão ligada, do canário cantando ou do telefone tocando; ligações de clientes que não são meus. Para não dar parte de durona, chorava nos primeiros dia durante o banho, ligava para as amigas e pedia conselhos sobre a decisão de ir embora, preocupada com a seriedade da minha atitude. A água acabava, o telefone desligava e eu me sentia melhor, mais consolada. Encontrei nos amigos e parentes (e no gato, claro) a companhia que me faltava.
Finalmente me sentia segura para fazer o que eu queria, e do meu jeito. Salada? Só com tempero balsâmico. Saudade? O que é a saudade perto da paz interior?
Mil violetas na janela, sem problemas pra resolver, sem camisas "desbotonadas" pra costurar, meias para remendar e almoços com horários regrados. Que fim levou a Häagen Dazs? Comi. Aprendi a fazer o que eu quero sem restrições - aprendi a falar, a comer e até a caminhar sozinha.
Independente, não volto mais. Pela primeira vez, sou unicamente a Senhora de mim mesma.