sábado, 27 de janeiro de 2018

Apelo- Releitura

Na oficina cultural "Formação de leitores contemporâneos", como parte da atividade prática, os participantes criaram um grupo oculto no Facebook para fazer releituras sobre o conto "apelo" parte da obra "O Vampiro de Curitiba", de Dalton Trevisan. Deixo aqui a minha versão - e é claro, a original, pelo diálogo entre os textos, e simplesmente por que vale a pena ser lido.

Conto Apelo (original):

Amanhã faz um mês que a Senhora está longe de casa. Primeiros dias, para dizer a verdade, não senti falta, bom chegar tarde, esquecido na conversa de esquina. Não foi ausência por uma semana: o batom ainda no lenço, o prato na mesa por engano, a imagem de relance no espelho.
Com os dias, Senhora, o leite primeira vez coalhou. A notícia de sua perda veio aos poucos: a pilha de jornais ali no chão, ninguém os guardou debaixo da escada. Toda a casa era um corredor deserto, até o canário ficou mudo. Para não dar parte de fraco, ah, Senhora, fui beber com os amigos. Uma hora da noite eles se iam e eu ficava só, sem o perdão de sua presença, como última luz na varanda, a todas as aflições do dia.
E comecei a sentir falta das pequenas brigas por causa do tempero da salada — meu jeito de querer bem. Acaso é saudade, Senhora? Às suas violetas, na janela, não lhes poupei água e elas murcham. Não tenho botão na camisa. Calço a meia furada. Que fim levou o saca-rolha? Nenhum de nós sabe, sem a Senhora, conversar com os outros: bocas raivosas mastigando. Venha para casa, Senhora, por favor.


Releitura:

Amanhã faz um mês que eu saí de casa. Os primeiros dias foram difíceis, até para voltar a suportar a convivência comigo mesma. Mas não se preocupe, foi ausência de uma semana, logo mais e sem reservas, me encontrei nas manias mais intrínsecas e cotidianas: borrando todos os lenços com batom, organizando todas as louças milimetricamente e conferindo minha imagem no espelho a cada minuto.
Com os dias a casa passou a ficar arrumada, e o cheiro de ausência, úmido, também não mais existia. A sala limpa, os jornais lidos e organizados embaixo da nova escada. Eu podia ler em paz, sem o som da televisão ligada, do canário cantando ou do telefone tocando; ligações de clientes que não são meus. Para não dar parte de durona, chorava nos primeiros dia durante o banho, ligava para as amigas e pedia conselhos sobre a decisão de ir embora, preocupada com a seriedade da minha atitude. A água acabava, o telefone desligava e eu me sentia melhor, mais consolada. Encontrei nos amigos e parentes (e no gato, claro) a companhia que me faltava.
Finalmente me sentia segura para fazer o que eu queria, e do meu jeito. Salada? Só com tempero balsâmico. Saudade? O que é a saudade perto da paz interior?
Mil violetas na janela, sem problemas pra resolver, sem camisas "desbotonadas" pra costurar, meias para remendar e almoços com horários regrados. Que fim levou a Häagen Dazs? Comi. Aprendi a fazer o que eu quero sem restrições - aprendi a falar, a comer e até a caminhar sozinha.
Independente, não volto mais. Pela primeira vez, sou unicamente a Senhora de mim mesma.

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